
Chile, Colômbia e Argentina abriram um caminho que o Brasil precisa trilhar a partir das diferenças, buscando a união
Por Beatriz Della Costa
A pandemia nos fez dar muitos passos atrás. Quem mais sofreu foram as mulheres, especialmente as mais pobres. Com filhos fora das escolas e tendo que cuidar dos idosos, elas perderam renda e trabalharam mais enquanto a violência de gênero crescia. Mas o recém-terminado e tão conturbado ano de 2020 foi, por mais contraditório que pareça, um ano histórico para a conquista dos direitos políticos das mulheres latino-americanas.
Começou no Chile, que em outubro oficializou a troca de uma constituição da época da ditadura por outra a ser redigida por uma assembleia paritária – a primeira no mundo desenhada por homens e mulheres em igual número. Isso é fruto de uma jornada feminista que remonta aos anos 1980 e atingiu o ápice em 2018 e nos protestos de 2019. Quando as mulheres protagonizaram uma mobilização criativa, marcada pela performance “Un violador en tu camino”, o movimento nas ruas deu força às políticas eleitas que lutavam pela paridade.
Em dezembro veio a Colômbia. Como reflexo de manifestações nacionais, o congresso estabeleceu a paridade de gênero nas eleições. Em março de 2020 participei de uma das primeiras reuniões da campanha ParidadYa, responsável por articular a sociedade civil e dar apoio às políticas e políticos dentro do Congresso Nacional, mas nunca pensei que, num período tão complicado, o sucesso viria com tamanha rapidez. Agora, partidos como o Polo Democrático já anunciaram que vão adotar a equidade também internamente.
Para fechar o ano, na madrugada de 30 de dezembro as argentinas conquistaram o direito ao aborto em outra luta que uniu mulheres de posicionamentos políticos diferentes. A articulação começou em 1984, ganhando força com a Campanha Nacional Pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito na década de 2000 (que envolveu o grupo Católicas pelo Direito de Decidir) e crescendo mais com o reforço do movimento Ni Una Menos em 2015. Quando a discussão chegou ao Congresso, em sessões públicas que viralizaram, muitas jovens, na famosa “revolución de las hijas”, levaram o tema para dentro de casa e o fizeram circular na sociedade. Agora, o aborto legal, seguro e gratuito é real.
Não há perspectiva de que tão cedo tenhamos algo assim no Brasil. As mudanças vêm quando as mulheres estão nas ruas e nos governos. Sem essa conexão, avançamos muito lentamente. Por maior que seja o esforço das mulheres eleitas, a falta de ressonância na sociedade civil leva à estagnação.
O sucesso de nossas vizinhas deixa uma lição: o avanço se dá de forma transversal, incluindo diferentes feminismos (negro, indidigena, LGBTI+, popular, acadêmico e até mesmo liberal) e campos sociopolíticos. E elas nos ensinam ainda que a evolução dos direitos políticos passa por primeiro garantir que mais mulheres – diversas e com consciência política de gênero – cheguem ao poder. O aborto não seria descriminalizado na Argentina se elas não ocupassem 40% do Congresso. O Brasil, por outro lado, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a ONU Mulheres, ocupa a antepenúltima colocação do ranking da participação feminina na política da América Latina.
Mas, com o pé no chão, não perco a esperança. E ela está nas dezenas de movimentos, iniciativas e coletivos de apoio a mais mulheres na política. Em meio a esses grupos, em algum momento vai surgir uma articulação capaz de guiar as brasileiras por um caminho em comum. Só não podemos esquecer que para trilhá-lo precisamos, a partir das diferenças, buscar a união.
Beatriz Della Costa é diretora e cofundadora do Instituto Update.
Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Globo, em 02 de fevereiro de 2021.