Em 1964, o Brasil foi vítima de um golpe de estado que culminou na implantação da Ditadura Militar – período que durou 21 anos e rendeu ao país muitas memórias nocivas, crimes impunes e uma incansável lista de violações de Direitos Humanos perpetradas por agentes do Estado brasileiro. Um dos marcos desse período foi o Ato Institucional nº05, que tem sido exaltado por grupos extremistas contemporâneos em manifestações antidemocráticas. Mas, por que o AI-5 foi o escolhido e o que isso significa nos tempos atuais? Continue a leitura e saiba mais!
Ditaduras militares na América Latina: um breve histórico
Em 1964, o Brasil não era o único país latino-americano a viver num regime ditatorial. Dez anos antes, Alfredo Stroessner assumiu o comando do Paraguai com a implementação da ditadura no país. Posteriormente, outros países da América Latina também passaram a viver sob ditaduras: Chile (1973), Uruguai (1973), Argentina(1976) e Bolívia (1964).
Mera coincidência todos esses países terem vivido ditaduras na mesma época? Certamente, não. A Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética foi o principal fator para que isso acontecesse. Era importante para os Estados Unidos barrar o avanço dos soviéticos – especialmente, nas Américas.
A influência da Guerra Fria também se fez presente nos treinamentos de militares. Muitos cursos voltados para este público eram pautados pela ideia de defender territórios, lutar pela pátria e defender o país contra inimigos externos. Todas essas ideias compõem a Doutrina de Segurança Nacional – que norteou as ditaduras de todos os países latino-americanos já citados.
“As ditaduras na América Latina se estabeleceram no período em que a ordem internacional sofria pelos enfrentamentos da Guerra Fria. Na época, os Estados Unidos desenvolveram uma série de mecanismos de combate ao expansionismo comunista. Já nos anos 1950, fora estabelecida pelas autoridades do país a Doutrina de Segurança Nacional, cujas diretrizes procuravam combater o “perigo vermelho” dentro e fora do território norte-americano”.
Do portal Educação.Globo
Partindo do pressuposto de que era preciso defender a pátria desses inimigos externos – que neste contexto, vinham da União Soviética – esses regimes ditatoriais criaram vários mecanismos para legitimar suas ações. Na Argentina, por exemplo, a Escuela de Mecánica de la Armada (Esma) foi utilizada para centralizar as ações da ditadura – que incluíam reuniões de oficiais, treinamento de militares, prisões, sequestros, torturas e desaparecimentos forçados sob a justificativa de que ali havia apenas treinamentos e encontros formais entre militares de altas patentes. No Brasil, um dos mecanismos mais utilizados foi a sanção dos Atos Institucionais. Ao todo foram 17 AI’s, mas o mais emblemático foi o nº05. E por quê?
O que significou o AI-5 para a Ditadura Militar no Brasil?
De todos os atos institucionais assinados durante a Ditadura Militar, o AI-5 foi o mais significativo em termos de legitimar as ações dos militares. Pautados pela ideia da Doutrina de Segurança Nacional, o AI-5 ampliou os poderes dos presidentes e institucionalizou várias violações de direitos. Para se ter uma ideia, o AI-5 deu aos presidentes o poder para intervir em municípios e estados – como fechar o Congresso Assembleias Legislativas, destituir governadores e prefeitos sob o pretexto da “defesa da segurança nacional”. O combate a possíveis inimigos sob o viés da Doutrina de Segurança Nacional não era claro e isso dava margem para que opositores em maior ou menor grau fossem perseguidos pela Ditadura Militar.
O AI-5 deu ao presidente também a legitimidade para ter decretos implementados sem qualquer revisão judicial. Atos institucionais, por exemplo, não passavam por revisões judiciais e isso fez com que leis e normas sofressem mudanças sem qualquer debate com a sociedade ou o poder judiciário. As ações baseadas nos Atos Institucionais vigentes também não tinham nenhuma revisão judicial. Exemplo disso foram as inúmeras suspensões de direitos políticos feitas a partir do AI-5, que de tão imediatas não davam direito a defesa para quem fosse vítima disso.
Outro mecanismo implementado com o AI-5 foi a censura. Veículos de comunicação, artistas, escritores e jornalistas são algumas das muitas vítimas da censura. Como passou a ser institucionalizado, havia vários órgãos reguladores da censura, dentre eles o Departamento de Censura de Diversões Públicas – órgão criado durante o Estado Novo e reformulado pela Ditadura Militar de 1964. Tudo a ser veiculado nos meios de comunicação (rádio, tv e jornal) tinha que passar por esse departamento e caso não estivesse em total acordo com os valores da Doutrina de Segurança Nacional, a censura era aplicada. Um caso muito conhecido foi de Roque Santeiro, novela de Dias Gomes, que seria lançada em 27 de agosto de 1975, mas que no dia da estreia foi censurada sob a seguinte acusação:
“A novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja.”
Os direitos civis nos anos de chumbo
Não foram só os direitos políticos que foram duramente atacados durante a Ditadura Militar. Com o AI-5, o direito ao habeas corpus aos que fossem acusados de “perturbar ou ameaçar a segurança nacional” ou de qualquer outro crime de ordem política, foi suspenso. Essa é uma das razões para que historiadores e antropólogos atestem o fortalecimento da Ditadura Militar após o AI-5. É a partir dele que o número de pessoas vítimas de desaparecimentos forçados aumenta no Brasil. Aqui, vale explicar que o desaparecimento forçado é parte da estratégia de repressão contra possíveis opositores ou pessoas consideradas inimigas do país. No contexto da Ditadura Militar, muitas pessoas foram presas, torturadas até a morte e, em seguida, tiveram seus corpos descartados em locais não identificados. Suas famílias não foram notificadas de suas prisões e mortes.
As prisões, torturas, mortes e desaparecimentos foram práticas bastante comuns nas ditaduras implementadas em países latino-americanos. No Uruguai, por exemplo, a estimativa é de que mais de 400 pessoas tenham sido vítimas de desaparecimento forçado durante a ditadura uruguaia. Na Argentina, esse número passa de 13 mil, de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Nação Argentina. A Comissão Nacional da Verdade aponta que no Brasil há 434 pessoas desaparecidas nessas condições.
No livro “El Dictador”, de Maria Seoane, o ex-presidente general Jorge Rafael Videla, fala sobre o desaparecimento forçado durante os anos em que esteve no poder argentino:
“Não, não se podia fuzilar. Coloquemos um número, ponhamos cinco mil. A sociedade argentina, mutável, traiçoeira, não teria apoiado os fuzilamentos: ontem dois em Buenos Aires, hoje seis em Córdoba, manhã quatro em Rosário, e assim até cinco mil, 10 mil, 30 mil. Não havia outra maneira. Era preciso que desaparecessem. É o que ensinavam os manuais da repressão na Argélia (…) Estivemos todos de acordo. Dar a conhecer onde estão os restos? Mas que é o que podíamos assinalar? O mar, o Rio da Prata, o Regato? Pensou-se, no seu momento, em fazer a conhecer as listas. Mas depois concebeu-se: se se dão por mortos, de seguida vêm as perguntas que não podem ser respondidas: quem matou, onde, como…”

Para que nunca mais se esqueça. Para que nunca mais aconteça!
O portal Geledés fez uma lista com 10 motivos para não ter saudade da Ditadura Militar. Aqui, destacamos 3 pontos importantes dessa lista:
1 – Sistema de saúde frágil
O SUS foi criado somente em 1988 e antes dele o Brasil possuía o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) – que apesar de ser público, não era aberto para todas as pessoas. O Inamps era um serviço exclusivo aos trabalhadores e trabalhadoras com carteira assinada e isso tornava o acesso à saúde algo bastante precário durante a Ditadura Militar. Várias doenças que foram erradicadas com as campanhas de vacinação promovidas pelo SUS – como a poliomielite e o sarampo – eram bastante comuns nos tempos do Inamps.
2 – Educação pautada pela ideia da Doutrina de Segurança Nacional
Para propagar os ideais da Doutrina de Segurança Nacional, a educação era bastante visada pelos militares. Além da execução do Hino Nacional ser obrigatório em todas as escolas – públicas ou privadas -, disciplinas como OSPB (Organização Social Política Brasileira) e Educação Moral e Cívica eram lecionadas em todas as escolas para ensinar aos estudantes a história do Brasil pela perspectiva doutrinadora da Ditadura Militar. Além disso, o percentual de analfabetismo nesse período era alto. Entre 1960 e 1970, cerca de 50% da população brasileira acima de 15 anos não sabia ler e escrever. Em 2022, esse percentual é de 6,6%. Durante a Ditadura Militar, não haviam políticas públicas eficientes para combater o analfabetismo. Um dos poucos programas existentes era o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). A pesquisadora e pedagoga Angela Cristina Souza Arruda em sua pesquisa mostra que:
“O Mobral tomou o lugar do Plano Nacional de Alfabetização (PNA), então idealizado por Paulo Freire no início dos anos 60 do século XX, cujos ideais eram promissores em termos de Educação no Brasil. O Mobral, que durou quase duas décadas, foi um dos programas de educação mais caros que o Brasil já teve, mas que fracassou, especialmente porque seus objetivos eram ideológicos e não condiziam com a realidade da EJA”.
3- Falta de transparência das ações
É muito comum ouvir que a Ditadura Militar de 1964 foi um período sem corrupção ou que o Estado brasileiro teve seu melhor momento nessa época. A origem dessas falas tem uma explicação: a censura e o controle. Com os veículos de comunicação sob a mira da censura, os órgãos fiscalizadores sufocados ou extintos, os agentes públicos a mercê dos militares, a quem caberia fiscalizar e tornar pública qualquer irregularidade? Esquemas de corrupção existiam nesse período e com o AI-5, o Brasil se tornou um país vulnerável a isso. Para se ter uma ideia, entre 1971 e 1974 o Brasil viveu uma grave epidemia de meningite e isso não foi noticiado. O motivo? A Ditadura Militar censurou notícias sobre esse assunto. Enquanto os hospitais estavam cheios de crianças doentes, os veículos de comunicação falavam de outras questões que eram autorizadas pelos militares – como o chamado “Milagre Econômico”.
Para saber mais sobre ditaduras na América Latina
1 – Seu amigo esteve aqui, de Cristina Maria Bicalho Chacel
Neste livro, Chacel conta a história de Carlos Alberto Soares de Freitas. Conhecido como Beto, fez parte da VAR-Palmares e foi preso, levado para Casa da Morte – local utilizado para tortura e desaparecimento forçado em Petrópolis. Ao longo do livro, Chacel conta aos leitores sobre os mecanismos existentes na Ditadura Militar Brasileira de 1964 bem como a participação de outras pessoas na luta pela democracia brasileira – dentre elas, a ex-presidenta Dilma Rousseff.
2 – Que bom te ver viva, de Lúcia Murat
O documentário reúne depoimentos de mulheres que lutaram contra a Ditadura Militar no Brasil, suas dores diante das torturas sofridas e sobre recomeçar a vida após todos os sofrimentos. A diretora Lúcia Murat também conta a sua própria história. Lúcia era militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 08 de Outubro), foi mantida presa por 3 anos e meio, período em que foi vítima de torturas que ela narra no documentário e em outras obras audiovisuais de sua autoria.
3 – A noite de 12 anos, de Alfredo Brechner
Filme disponível na Netflix que narra como foi a ditadura militar no Uruguai a partir da experiência de três militantes: José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro. Por 12 anos, os três tiveram que lidar com condições adversas – torturas físicas e psicológicas, fome e solidão, dentre outras coisas – para sobreviver e defender a democracia uruguaia. Confira o trailer:
4 – Argentina, 1985, de Santiago Mitre
Disponível na PrimeVideo, o filme de Mitre conta a história do promotor Julio Strassera e de como ele conduziu um dos mais importantes processos ligados à justiça de transição: o julgamento dos militares envolvidos na ditadura argentina. É importante salientar que a Argentina é um dos poucos países no mundo que puniu torturadores, militares e demais pessoas ligadas à Ditadura liderada por Videla – que foi um dos condenados pelos crimes cometidos.
Passadas quase 6 décadas e nos deparamos com grupos extremistas pedindo o retorno de um período que tanto prejudicou a América Latina.
Durante as eleições de 2022, o Brasil testemunhou ações destes grupos exigindo a volta do AI-5 e outras medidas autoritárias em nome de ideais que não tem nenhum embasamento. O discurso anticomunista da Guerra Fria não se aplica aos tempos que vivemos hoje. Ainda que isso fosse uma possibilidade hoje, não seria uma justificativa para atacar o Estado Democrático de Direito.
O AI-5 fez com que as violações de direitos em todas as esferas ficassem frágeis. Foi criado um inimigo mas, no final, quem foi atacado foi o povo brasileiro. Foi o povo latino-americano que pagou o amargo preço por essa defesa da pátria.
Por tudo isso, lembremos sempre que nenhum avanço social ou econômico virá da violação de direitos.
Falar sobre isso em dias como este é fundamental para que crimes bárbaros não caiam no esquecimento. O esquecimento é a arma dos opressores.
“Para que nunca se esqueça. Para que nunca mais aconteça!”