Por: Helena Salvador
A mais recente medida para a igualdade de gênero aprovada pelo Senado argentino aconteceu no último dia 17 de julho: os parlamentares reconheceram o cuidado materno como trabalho para aposentadoria. A medida viralizou nas redes sociais e diversas ativistas feministas no Brasil compartilharam a mensagem de Silvia Federici sobre a valorização do trabalho de cuidados como atividade produtiva: “Isso que chamam de amor é trabalho não pago”.
Silvia federici, filósofa e investigadora feminista, esteve na Argentina em 2019, e já naquele ano destacou que “a Argentina é o país do mundo onde o feminismo está no ponto mais alto”, e que “a rede de mulheres argentinas é única no mundo”. Mas o que torna a experiência Argentina vanguardista e inspiradora?
Desde 2015, a Argentina protagonizou uma explosão de novas legislações para a igualdade de gênero. Em 2017, foi aprovada a paridade de gênero nas listas eleitorais. Em 2019, foi aprovada a Lei Micaela, que estabeleceu a obrigatoriedade de capacitação em gênero e violência de gênero para todas as pessoas que desempenham funções públicas. Já em 2021, uma sucessão de quatro normativas aprovadas chamou atenção do mundo: a destinação de 1% das vagas em concursos públicos para a comunidade trans, a possibilidade de identificação não-binária nos documentos oficiais, a aposentadoria por tempo de cuidado materno e a lei do aborto.
Sem dúvidas, a medida mais que mais causou impacto foi a aprovação do “Acceso a la interrupción voluntaria del embarazo”, ou a descriminalização do aborto, isso porque, além de serem poucos os países que defendem a liberdade sexual e reprodutiva das mulheres na América Latina, as feministas argentinas foram capazes de criar um grande movimento de contra hegemonia cultural com a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Livre e Gratuito – consequência de 14 anos de construção de base política e alianças entre os movimentos feministas sindicais, territoriais e políticos.
O ápice dessa articulação entre as ativistas pelo direito das mulheres em todo o território argentino aconteceu em 2015, com a campanha #NiUnaMenos, que surgiu no Twitter e resultou na primeira manifestação em massa da causa feminista no país, reunindo 15 mil mulheres em Buenos Aires. Nessa ocasião, um grupo de comunicadoras convocou as mulheres argentinas a protestar contra o aumento da violência de gênero no país e reuniu mais de 200 organizações que assinaram um conjunto de demandas sob o lema “Queremos estar vivas, livres e independentes! “.
“2015 foi o ponto de partida, a primeira vez que sai as ruas à massa feminista”, explica Cecilia Palomero, escritora e ativista argentina em entrevista para a websérie Eleitas, do Insituto Update. Segundo Cecília, “a função mais importante desse momento de comunicação forte do coletivo Ni Una Menos foi colocar em circulação o conceito de feminicídio, politizar essas mortes, que eram , na verdade, a ponto do iceberg de uma série de violências que estavam inviabilizadas”.
2015 também foi a ano em que Mauricio Macri assumiu a presidência da Argentina, figura reformista que surgiu em um contexto de crise financeira e que projetou reformas neoliberais que não apenas precarizavam a vida no país, mas que também foram capazes de unir a oposição, principalmente a partir da força e articulação do movimento feminista.
No ano seguinte, em 2016, foi decretada a primeira greve nacional que posicionou o movimento de mulheres argentinas como atores sociais e políticos chave no país. Nessa ocasião, as argentinas clamavam que “el Estado es responsable”, ou seja, o Estado era o responsável pela falta de estrutura para a aplicação da lei contra a violência de gênero, fruto das manifestações massivas do ano anterior. Como resposta a pressão das ruas e a proporção internacional de #NiUnaMenos (e também como forma de aliviar a tensão contra as críticas ao seu governo), iniciativas para a igualdade de gênero começaram a ser levadas até às instituições, como foi o caso da Lei Micaela.
Tudo isso até chegar 2019, quando mais de 200 mil mulheres se reuniram na cidade de La Plata no 34º Encontro Plurinacional de Mulheres. Foi o maior encontro do movimento feminista da história da América Latina. Nesta ocasião, quem tomou a frente foi a nova geração. “Las Pibas” como são conhecidas, são as “filhas” das mulheres que foram às ruas em 2015 e que retomaram o chamado nacional para Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Livre e Gratuito. O Instituto Update esteve em La Plata reportando o encontro para a série Eleitas: Mulheres na Política.
“O lugar da mulher na política mudou, e essas meninas que foram às ruas não voltaram para suas casas iguais”, relatou Victoria Donda, ex-Deputada Federal argentina, para o estudo Eleitas.
Neste mesmo ano, a Lei de Aborto foi aprovada pela Câmara dos Deputados, mas vetada pelo Senado. Entretanto, a sementinha da mudança cultural, plantada pelo Ni Una Menos, estava germinando.
“O Aborto passou a ser discutido em toda sociedade, nos lugares mais remotos, espaços menos vinculados com a questão de Direitos Sexuais e Reprodutivos”, contou Diana Maffía, filósofa argentina, para o estudo Eleitas.
Em 2021, também com a ascensão de um novo governo progressista, o Ni Una Menos, pode começar a colher os frutos da mudança cultural que plantou e o feminismo chegou às instituições. Além das leis aprovadas, a Argentina passa a contar com o primeiro orçamento público com perspectiva de gênero do mundo, conduzido pela Diretora de Igualdade de Gênero do Ministério da Economia, Mercedes D’Alessandro. O avanço da luta pela igualdade entre homens e mulheres está inserida no plano econômico do Estado e pode transformar toda a estrutura do país.
As feministas argentinas tomaram a vanguarda após um longo processo de articulação que uniu força, transversalidade e protagonismo político: as mulheres espalhadas por todas as províncias, estavam organizadas em prol de uma mesma campanha massiva e puderam se articular politicamente com as lideranças dos territórios.
A experiência argentina mostra como o futuro está sendo construído no agora e que mudar e politizar a igualdade de gênero é um movimento necessário e urgente.