Neon Cunha se descreve como “mulher, negra, ameríndia e transgênera, nessa ordem de importância”.
Primeira trans brasileira a mudar de nome sem diagnóstico de patologia e uma das maiores ativistas LGBTQIAPN+ do país, Neon se candidatou em 2022 ao cargo de deputada estadual por São Paulo. Embora tenha recebido 35 mil votos, não foi eleita.
Com a palavra, Neon Cunha!
Uma relação intrínseca com a política
Minha relação com a política sempre foi algo intrínseco. Trabalhei no gabinete do prefeito de São Bernardo durante a gestão do Antônio Tito Costa, há mais de 40 anos. Foi um tempo em que pude acompanhar de perto as transformações sociopolíticas da cidade. Também fui engajada na luta estudantil, discutindo o processo constituinte e comemorando suas conquistas.
Mas também testemunhei inúmeras negligências ao longo da história. E comecei a questionar muitas coisas. Quem está fazendo essa política? Por quê? E para quem? É preciso pontuar claramente uma verdade: parece que muitas candidaturas buscam se tornar celebridades e enriquecer. Isso acontece inclusive na esquerda, onde muitas vezes há a ausência de uma discussão ética e profunda sobre o pensamento político socialista.

Então venho acompanhando tudo isso de forma intrínseca há muito tempo, conhecendo de perto as estruturas sociais, que a meu ver se referem muito mais a controle do a distribuição de direitos e cuidado.
A candidatura como necessidade
Mesmo muito próxima da política desde cedo, eu nunca havia pensado em me candidatar. Pelo contrário, sempre fui bastante resistente. Várias vezes fui chamada para ocupar cargos em gabinetes, mas sempre neguei. Dizia que não era favor do aparelhamento do movimento LGBTQIAPN+. Mas em 2022 senti que me colocar, me posicionar e assumir uma responsabilidade política era a única opção.
Tomei essa decisão durante uma conversa com a Juliana Gonçalves, que era chefe de gabinete da Erica Malunguinho. Notei uma lacuna identitária deixada na Alesp pela Erica: não houve a construção de outra candidatura de uma mulher negra e trans. Resolvi me candidatar, portanto, para não deixar esse lugar sem a devida atenção.
E, claro, isso foi algo que somou a meus outros ideais — moradia, educação de qualidade desde a primeira infância, encarceramento, falta de empregabilidade e outras pautas que marcaram minha campanha.
Mas, como ativista independente, já sabia que seria doloroso levar um ativismo tão ético a uma política institucional que ainda me gera muitos questionamentos, seja à esquerda ou à direita. Escolhi, então, integrar o PSOL, por sua integridade partidária e também por toda a história da Marielle.
Outro motivo, muito pessoal, foi o falecimento da minha mãe, em fevereiro de 2022, que me fez refletir sobre a vida dela e as conquistas que lhe foram negadas devido às desigualdades presentes no Brasil.
As maiores dificuldades
Uma das maiores dificuldades que enfrentei como candidata foi de recursos. O apoio financeiro disponibilizado pelo partido para a campanha foi muito limitado. Também foi bastante difícil fazer alianças.
Além disso, não é fácil lidar com a ideia de competição dentro da política, com pessoas tentando minar as candidaturas umas das outras. E isso fica mais forte quando surge uma pessoa que não havia anunciado a intenção de concorrer. Cria-se uma certa hostilidade, até mesmo dentro do próprio partido.
Outros obstáculos foram pessoais: eu estava passando pelo luto e por um processo pós-operatório. Mas decidi seguir em frente.
Nenhuma dessas dificuldades foi uma surpresa para mim. Acho que consegui lidar bem com todos esses desafios. A grande questão sempre é lidar com a natureza humana. A política deveria ser um processo coletivo, mais unificado e coeso, porém ainda está longe disso.
Mas o resultado foi surpreendente: tivemos 35 mil votos na primeira candidatura.
Uma nova perspectiva
Foram muitos os pontos positivos da campanha. A relação corpo a corpo foi fundamental. Fiz uma campanha praticamente só utilizando transporte público, então foi impressionante sair às ruas e perceber que as pessoas já me reconheciam, fruto da presença nas redes sociais e das conexões que estabeleci.
Fiquei surpresa com a ausência de ameaças, tanto digitais quanto psicológicas ou físicas. Foi incrível receber acolhimento e vivenciar momentos marcantes, como quando pessoas saíam de restaurantes com os filhos e declaravam apoio, dizendo que me seguiam e que eu era muito importante para eles. Uma situação especialmente emocionante foi ouvir uma criança dizer: “Minha mãe fala de você”. E, claro, houve também muitas trocas significativas com mulheres negras de diversas identidades, assim como com outras pessoas LGBTQIAPN+.
O mais gratificante foi encontrar tanta gente que busca ética, verdade, vozes autênticas, mudanças, e não de uma simples validação. Outro dia mesmo, muito depois da campanha, estava em um evento e as pessoas me perguntavam: “Você vai continuar candidata? Não desista.” Encontrei um casal de mulheres lésbicas, negras, gordas, que expressaram o quanto fui importante para elas. Também participei de um encontro coletivo de professores e pedagogos, onde me disseram assim: “Que bom que você estava lá, que bom que você colocou sua vida ali, que bom que você se expôs”. É nessas novas vozes que quero acreditar.
Tudo isso, então, foi muito impactante para mim e mudou minha perspectiva sobre a política institucional. Agora estou mais assertiva e consciente da necessidade de impulsionar novos nomes. Somos, de fato, sementes de Marielle. Isso ficou ainda mais evidente para mim.
E agora também tenho a certeza de que é possível, sim, fazer campanha com responsabilidade afetiva.
