Especial #19J: os pontos de conexão entre os protestos das juventudes na América Latina

Por Helena Salvador e Pedro Lacerda

No último 19 de junho aconteceu o segundo ato massivo contra Jair Bolsonaro em menos de um mês e em mais de 500 cidades brasileiras. A começar pelo nome do ato nas redes #19J – Forma típica de denominação de protestos em outros países da América Latina – as manifestações de rua contra Jair Bolsonaro têm convergências políticas, sociais e estéticas com outros movimentos anti-governo latino-americanos. A principal semelhança pode ser a presença das juventudes como grupo chave na mobilização dos protestos.

Se durante as manifestações que iniciaram em 2018 no Chile 75% dos protestantes tinham menos de 39 anos, segundo dados da Faculdade de Sociologia da Universidade do Chile, e na Colômbia, o perfil etário dos manifestantes varia principalmente entre 17 e 27 anos, no Brasil, seja pelo agravamento da pandemia ou por questões geográficas, a narrativa dos atos está sendo escrita principalmente por grupos das juventudes dos municípios. Mas como os jovens estão construindo a narrativa de mobilização contra o governo? Pedro Lacerda, Coordenador de Comunicação do Projeto Emergência Política Jovens, esteve presente no ato em São Paulo e nos contou sobre suas impressões.

Diversidade não representada

“Esse 19 de julho foi o encontro das possibilidades de um povo que quer se encontrar dentro do que se é permitido com a democracia, uma participação popular efetiva! De um povo que há muito tempo quer ser escutado em toda a sua complexidade. Em todos os noticiários vimos a irreverência de um ato do povo para o povo e com a imaginação dessa mesa redonda em que se sentam mulheres, indígenas, população LGBTQIAP+, pretos e pretas, deficientes… a sagração desse início de inverno foi dado ao ritmo de marchinhas de carnaval e cantos parafraseados da música popular brasileira. Parecia uma magia onde muitos se questionavam se poderiam dançar, se só gritavam suas indignações frente a um governo negacionista ou, até mesmo, viver aquele espaço como um momento de luto pelas 500 mil de vidas perdidas durante a pandemia.”

Nos três países, Chile, Colômbia e Brasil, os respectivos presidentes representam um poder de homens brancos, conservadores e da elite, que atuam para cercear os direitos conquistados por mulheres, indígenas, população LGBTQIAP+ e os movimentos negros. O descompromisso institucional com a diversidade abriu brechas alternativas para a manifestação dos grupos que acabaram se encontrando nas ruas. Na Colômbia, a cidade onde os protestos tiveram mais força foi Cali, segunda cidade com a maior população negra da América Latina e zona de grande influência indígena. No Chile, a bandeira Mapuche foi símbolo da tomada da Praça da Dignidade e o movimento de mulheres representou a grande força de mobilização pela causa constituinte. A desconexão dos governos com a diversidade do tecido social está escancarada e, por isso, a participação política não institucional por meio dos protestos é uma via de visibilização dos grupos minorizados. 


Imagem: Pedro Lacerda

A tragédia pandêmica

“Senti a revolta no olhar de quem tem hoje, como luta, a vida. A sede por compartilhar a vida estava em todos os rostos que, há mais de um ano, estavam afastados de quem procura cuidado em outras pessoas, no nível individual mesmo. Mas o que me questionei durante esse tempo na manifestação era que, se tem algo que ainda é uma certeza, é que continuamos seguindo todos os protocolos: pessoas negras são as que mais morrem de covid no Brasil. Neste final de semana, atingimos essa marca horrível de mortes no país e parece que, ainda sim, nada é feito para conter. A barreira já foi ultrapassada pelo alto comando do país, que é apoiado por uma elite que cruza os braços para as classes mais abaixo e, como bem entendemos, isso respinga em quem há anos vem lutando pelo mínimo de dignidade. Hoje, com todo o cenário que temos e a movimentação popular é preciso assumir riscos e que o povo venha com o ‘sangue nos olhos’ em não abrir mão dos seus direitos e principalmente da democracia.”

Sair às ruas no ápice da pandemia pareceu um risco menor para uma grande parte da população do que seguir passivamente as ordens de governantes ineficientes no combate ao coronavírus. No Brasil, proteger-se do vírus durante as manifestações era por si um ato simbólico contra o governo. Na Colômbia, um dos gritos de guerra das manifestações foi “No al hambre” (“não à fome”), a falta de recursos básicos para a população mais pobre foi vista como resultado da má gestão da crise pelo governo. No Chile, a inexistência de estrutura básica de saúde pública, logo no início da pandemia, foi um dos agravantes para os protestos contra os sistemas de privatização da saúde dos governos neoliberais, como o de Sebastián Piñera.


Imagem: reprodução

A revolta artística

“Pois é, um momento extremamente delicado que estamos vivendo, porém com uma intensidade maior pois o que está em jogo é a vida das pessoas periféricas, indígenas e LGBTQIAP+. Claro que a sua também está afinal de contas se a democracia está frágil todos nós passaremos por momentos mais sombrios… Nos atos de 19 de junho, em todo o país e vários outros do globo, vimos esse grito maior, mais alto e tomando proporções vindas de um povo enfurecido. Para além da fúria, tinha um jeito muito nosso de fazer valer as nossas vozes. Vimos uma manifestação que ultrapassou a onda presencial e foi tomar maiores proporções na web, uma luta que veio do coletivo sem ofuscar outras pautas identitárias, foi a legitimação de grito guardado, e está sendo mais um grito por uma liderança que de fato escute esse povo e que cuide desse povo, em toda a sua complexidade. Goste-se ou não, cada grito, fantasia, cartaz, meme como aqueles que se viram no dia 19 servem como estratégia de luta porque incomoda os poucos que permanecem no negacionismo! Antes queríamos provocar para gerar debate e no debate chegarmos num ponto em comum, mas me pergunto se há alguém para se debater quando esse alguém coloca em xeque a democracia? Martin Luther King já dizia que a salvação humana está nas mãos dos desajustados criativos.”

Existe um uso político da arte bastante latino-americano que surgiu nas manifestações chilenas e foi bastante visível em todo o Brasil nos protestos do #19J: o uso da estética pop como ferramenta de identificação entre grupos que pouco têm em comum a não ser a indignação contra o governo. As artes dos cartazes com reprodução de memes são uma possibilidade de restauração dos vínculos sociais e da constituição de formas de vida em comum, da ideia de comunidade (Rubio, 2013). Se a política institucional não abre possibilidades para a imaginação política das juventudes unidas em protesto, levar suas expressões culturais às ruas é uma forma de subversão da realidade. No Chile o famoso “negro matapacos” virou símbolo popular dos protestos e foi replicado em grafites, adesivos, camisetas e bandeiras. Na Colômbia, o grupo de bailarinas trans, Piscis, Nova e Axid são a grande atração dos protestos em Bogotá e milhares de pessoas param para assistir as apresentações de voguing no meio das manifestações de rua. As frases do vídeo viral do @essemenino, da conversa entre a Pfizer e o presidente, estamparam cartazes de atos em todo o Brasil. Levar símbolos pop para as manifestações políticas tem o poder de unir tecidos sociais que estão degradados pelos ataques à democracia. 



Imagem: reprodução

Esses três eixos de encontro entre as manifestações latino-americanas do Brasil, Chile e Colômbia mostram a ação emergencial como resposta à crise política: uma tentativa de criar novos imaginários a partir da diversidade e de buscar respostas e possibilidade para construir o futuro pós-pandêmico na região. A participação política eleitoral das juventudes e ocupação dos espaços de poder institucional, mesmo com a falta de referências e representatividade na política institucional, é o tema do estudo Emergência Política Jovem, do Instituto Update.

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