Racismo, gênero e clima

Redação: Mônica Ribeiro; Edição: Marcelo Bolzan e Mariana Belmont.

Ao longo dos anos, as mudanças climáticas ocasionaram o aumento da desigualdade no mundo, e o cenário nos territórios mais vulneráveis afeta diretamente o cotidiano das pessoas. 

Para debater o tema das mudanças climáticas e sua relação com desigualdades, racismo e gênero, o Gabinete de Inovação* reuniu Isabel Garcia-Drigo, PHD em Ciência Ambiental pelo PROCAM (USP) e AgroParisTech, gerente de projetos na Iniciativa de Clima e Cadeias Pecuárias do IMAFLORA e participante do Grupo de Trabalho em Gênero e Clima do Observatório do Clima; e Zezé Pacheco, secretária executiva nacional do Conselho Pastoral dos Pescadores e integrante da Mahin Organização de Mulheres Negras. 

Este foi o quarto dos seis painéis que reuniram especialistas da sociedade civil organizada e legisladores com equipes de mandatos de vereança eleitos pela primeira vez em 2020. 

Confira abaixo os destaques do encontro: 

Por que falar de gênero, racismo e clima?

Isabel Garcia-Drigo destaca a importância dos municípios nas questões ambientais, apontando que eles são os territórios onde as pessoas vivem, criam raízes e onde vão, cotidianamente, enfrentar os problemas e colher as soluções

“A questão das mudanças climáticas, que envolve todo o planeta e toda a humanidade, tem um impacto muito concreto no local, e vai impactar diferentes pessoas de diferentes formas. Porque há as condições de vida materiais, que não são as mesmas para todo mundo, e a questão histórica, que também nos equipa ou deixa de nos equipar para lidar com as mudanças climáticas”.

Ela cita o impacto das secas, chuvas e inundações sobre colheitas como um dos exemplos dessa relação: a mudança de regime de chuvas impacta menos grandes e médios fazendeiros, que são capitalizados e trabalham com grandes mercados, do que assentamentos, comunidades quilombolas e povos tradicionais no mesmo território, que têm menos condições de absorver o choque, reagir e manter os meios de vida. 

“Não podemos olhar com a mesma régua os problemas que afetam todos, mas afetam mais uns dos que outros. É preciso enxergar essa diferença e encontrar soluções para todos, de forma mais igualitária”.

Isabel aponta a importância de fomentar mais diversidade de mulheres da sociedade civil neste debate, reconhecendo que as mulheres nesses espaços ainda são majoritariamente brancas, formadas em universidades, e que é preciso ter maior participação de mulheres de outras regiões e dos grupos mais afetados pelas mudanças climáticas. 

Ela cita como motivos para essa participação ainda reduzida a rotina das mulheres em suas lutas cotidianas, que deixa pouco tempo para este tipo de interação, e também, em especial no momento pandêmico que vive o mundo desde 2020, a dificuldade de acesso à internet, já que atualmente essas interações se dão virtualmente. 

No pós-pandemia, Isabel crê que uma das formas de possibilitar a inclusão de mais e diversas mulheres nesses espaços será levar as discussões sobre gênero e clima para as comunidades. 

“Não é que faltam mulheres em termos de quantidade. Falta diversidade, porque faltam condições objetivas de proporcionar mais participação”. 

Sobre relacionar as questões de gênero e clima às pautas municipais, Isabel cita como exemplo o projeto Pira no Clima, na cidade de Piracicaba (SP), coordenado pelo IMAFLORA, que visa a construção do Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas do município com olhar especial para a questão de gênero.

Utilizando uma metodologia que privilegia a consulta ‘de baixo para cima’ torna-se possível ouvir vozes e os problemas concretos de grupos vulneráveis, para que sejam considerados no desenho do Plano. Apesar da impossibilidade de trabalho em campo por causa da pandemia, Isabel avalia que o projeto conseguiu revelar pessoas que nunca tiveram oportunidade de se pronunciar e participar da construção de uma política pública como esta. 

“O trabalho mostrou que ainda é difícil as mulheres terem voz nesses grupos. Os homens se colocam muito mais. A mediação do processo precisa ser sensível a isso e criar espaços para que essas vozes surjam, para que não haja intimidação das mulheres. E também para garantir a participação daqueles que geralmente já não se colocam, porque se sentem oprimidos”. 

Outro ponto destacado por ela é o desafio de trabalhar a adaptação às mudanças climáticas nos territórios, tendo em vista que problemas que tendem a piorar cada vez mais, como secas, enchentes, invernos e verões mais severos, precisam de soluções e de um planejamento que leve em consideração os diferentes grupos que vão ser afetados. 

Racismo e justiça ambiental

Zezé Pacheco destaca a importância do contexto dos antecedentes do racismo ambiental no Brasil:

“É uma oportunidade falar com as vereanças, que são quem pensa as políticas públicas, e verter o nosso pensamento. Porque a lógica brasileira é a de desconsiderar os grandes grupos, que aqui a gente se acostumou a chamar de minorias”.

Ela rememora o processo de colonização das Américas e do Brasil, marcado pela invasão de países europeus que, para fundamentar o domínio e a posse das novas terras, construíram um arcabouço de práticas e ideologias que justificassem e referendassem tal poder.  

Nessa construção, ela destaca como elementos combinados, que teriam marcado profundamente o continente e o país, o etnocentrismo como paradigma de pensamento superior; o cristianismo imposto como fé única e verdadeira; o racismo, que determinou a supremacia branca sobre outros grupos étnicos e facilitou o escravismo; a lógica patriarcal, que relegou mulheres ao lugar doméstico e ao servilismo; a lógica do extrativismo e monocultivo voltados à exportação como modelo para pilhagem dos recursos naturais; a violência como instrumento de todo esse processo. 

Zezé cita o sociólogo peruano Aníbal Quijano, que afirma que a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça foi um dos eixos fundamentais do capitalismo, uma construção mental que expressa a experiência da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes de poder mundial. 

“Esses processos históricos convergiram estabelecendo como eixo fundamental do novo padrão de poder a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça. Uma estrutura biológica supostamente distinta que situava conquistados numa situação natural de inferioridade em relação a conquistadores. A articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho em torno do capital e do mercado, e seu movimento de expansão e universalismo, tudo isso foi aplicado inicialmente aos indígenas e não negros e depois aos negros”.

Por racismo ambiental, prossegue Zezé, entende-se a deliberada intenção de não responder às necessidades ambientais e destinar a degradação e a contaminação a comunidades subalternizadas, que em sua maioria são comunidades negras. Se expressa pela forma sistemática como os povos indígenas e os negros são especialmente atingidos pela lógica da exploração econômica sobre seus territórios. As consequências ambientais, distribuídas de maneira diferenciada, fazem com que determinados grupos sejam atingidos de maneira particular, tornando-se mais vulneráveis. 

“O racismo ambiental é a discriminação racial das políticas ambientais, é a discriminação na escolha deliberada de comunidades negras e indígenas para depositar rejeitos tóxicos, instalar indústrias poluidoras. E também são racismo ambiental as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre as etnias e as populações vulnerabilizadas”. 

Exemplos disso citados por ela são a produção de pesca, carcinicultura e aquicultura em grande escala, que substituem comunidades e destroem manguezais. A mineração, que destrói os territórios e escolhe as comunidades negras, pobres, quilombolas e campesinas como locais para onde são destinados os rejeitos da atividade. 

Zezé também destaca as grandes obras urbanas, que geralmente são construídas sem consulta e participação das comunidades e que, embora as construtoras sempre tenham um discurso de desenvolvimento e garantias para a população, as medidas que são prometidas não se efetivam na prática. 

As mulheres são a grande parte atingida por tudo isso, diagnostica, porque permanecem nos territórios, com filhos e famílias, independentemente da degradação, enquanto os homens migram em busca de melhores trabalhos e ambientes. 

“Geralmente, as mulheres têm seus corpos ligados ao território. Pescadoras, marisqueiras, trabalhadoras rurais, indígenas, seus corpos estão relacionados ao território. Que forma e é extensão dos corpos dessas mulheres”.

● Para discutir o município a partir de desconstrução, numa perspectiva de justiça ambiental, é preciso levar em consideração esses caminhos e essa lógica do racismo que se abate sobre as populações vulnerabilizadas. Mulheres, povos e comunidades tradicionais são grupos pouco pensados quando se constrói política pública. 

● As mulheres negras estão na base da pirâmide, são as que têm a menor renda, são maioria no Brasil e grande parte delas são chefes de família. Elas são a maioria e em maior situação de vulnerabilidade, portanto é preciso olhar de forma diferenciada para corrigir essas desigualdades. 

● A lógica da mudança do clima passa pelo modelo de desenvolvimento e pela forma como as cidades são construídas. É preciso reorientar a perspectiva de pensamento, de distribuição e de desenvolvimento. E também a perspectiva de justiça ambiental, para corrigir o futuro.

● Esse modelo de consumo e produção que temos produziu o que vivemos hoje, esse momento de sindemia. Discutir o clima e as desigualdades é central nesse momento da sociedade, e isso começa a partir do município, no nível local.  

Assista ao painel no Youtube  

Assista ao painel completo:

*O Gabinete de Inovação é um laboratório que reúne mandatos das casas legislativas de todo o país para construírem caminhos para a inovação nos parlamentos brasileiros. A iniciativa é do Instituto Update e Pacto pela Democracia. A edição de 2021 teve como tema “Um olhar local para o Clima”, e contou com apoio da Base.Lab, Clima de Eleições, Instituto Clima e Sociedade (ICS), Legisla Brasil, Purpose e Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS). Saiba mais em www.gabinetedeinovação.org.br 

Imagem: IPHAN

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